domingo, 11 de abril de 2010

Injustiça na desencarnação

Perguntamo-nos geralmente se a desencarnação ocorreu na “hora certa”, observando um princípio de justiça divina. Será correto pensar assim?

Para entendermos melhor a questão da desencarnação, pensemos primeiramente na encarnação. Encarnamos para adquirir experiência na vida corpórea, expiando imperfeições e trabalhando em missões as mais diversas, concorrendo assim com a obra geral da criação e, desse modo, promovendo a própria evolução (LE 132). À exceção dos Espíritos Puros, que não erram, para os demais a necessidade de evolução é saciada através de provas (LE 166) – provas daquilo que aprendemos e nos propomos a realizar quando desencarnados, na erraticidade. Toda a expiação é uma prova de superação dos nossos próprios erros, enquanto as missões podem ou não se constituir em provas, dependendo da necessidade de testar ou não determinadas habilidades (quando se tratam de missões em que o espírito não tem a possibilidade de falhar em razão da perfectibilidade de suas habilidades, não há aí provação).
Quando desencarnamos retornamos à erraticidade, fazemos um balanço das nossas realizações na vida de encarnado e seguimos estudando para o nosso melhoramento, preparando-nos para uma futura encarnação. Em síntese, esse é o ciclo de encarnação e desencarnação até que não tenhamos mais a necessidade de encarnar.

Voltando então à questão inicial: existe uma “hora certa” para a desencarnação? Entendemos que, de certo modo, existe, já que planejamos a nossa reencarnação e para tanto um prazo para as nossas realizações na vida corpórea se faz necessário. Porém, eventualmente, é possível desencarnar antes do momento planejado? Parece-me que sim. Haveria problemas, em razão disso, com a justiça divina? Parece-me que não.

Examinemos as razões dessas afirmativas.

Se alguém, no seu livre-arbítrio, resolve disparar uma arma e a bala, acidentalmente, atinge outra pessoa, haveria predestinação nesse evento? Isto é, seria o momento planejado para a desencarnação daquele Espírito? Não, isto não seria correto, pois seria o mesmo que dizer que a providência divina contou com o erro de um Espírito para cumprir o seu propósito, não lhe permitindo a chance de escolher, mesmo que no último instante, a opção de não disparar a arma. Seria a abolição temporária do livre-arbítrio. Mesmo assim, esse tipo de desencarne é comum, até rotineiro, diríamos. O Espírito que assim desencarna, sofreria com isso injustiça, por sua encarnação ser abreviada? Acreditamos que, se não houvesse possibilidade de reparação por tal eventualidade, a injustiça seria clara. Entretanto, as portas da reparação ficam abertas, com possibilidades infinitas, já que o Espírito é imortal e deve evoluir no infinito do tempo. Uma injustiça sofrida na sua encarnação pode ser reparada – isto é, compensada - em futuras encarnações. Desencarnar antes do planejado não seria portanto, conforme esse raciocínio, uma derrogação das leis divinas.

Pensemos em comparação com outras injustiças sofridas na vida corpórea. Por exemplo, as multidões que sofrem de fome, não em razão da sua imprevidência, mas em razão de um sistema social injusto, concentrador de riquezas. Nesse caso, diferentemente do outro caso citado (do disparo), o Espírito reencarnante conhece com exatidão a situação pela qual vai passar. O seu livre-arbítrio, nos parece, é plenamente respeitado, pois é escolha sua reencarnar num ambiente de injustiça social. Mas, no caso do disparo, a situação não é tão diferente como à primeira vista possa parecer. Sabemos, ao escolher reencarnar, que a vida corpórea num mundo repleto de imperfeições está sujeita a diversos inconvenientes. Dentre eles, o inconveniente de desencarnar antes do momento planejado, em função de deslizes cometidos por outros Espíritos. Em suma, reencarnamos sempre cientes dos riscos da vida corpórea. E, conforme já argumentamos, se alguma injustiça sofrermos na vida corpórea, haverá sempre a possibilidade de compensações futuras.

Com isso, e retomando a reflexão sobre a encarnação, fica claro também que nem todo sofrimento que passamos é uma expiação por faltas cometidas anteriormente. Pode se tratar de conseqüência inerente a alguma missão escolhida, a exemplo do sofrimento experimentado por Jesus no martírio da cruz (isto é, Jesus opta pela missão de trazer a “Boa Nova”, sabendo que terá de passar por sofrimentos, mas não opta pelo sofrimento em si). E, entretanto, pode ser ainda que o sofrimento ocorra simplesmente por conseqüência do fato de optarmos por reencarnar num mundo sujeito às mais diversas vicissitudes, mesmo que não façamos a opção de passar exatamente por determinadas intempéries. Mas, todo sofrimento converte-se em experiência e, para nós, Espíritos Imperfeitos, serve ainda como provação – a de enfrentarmos com coragem as eventuais injustiças da vida corpórea, com firmeza e resignação quando não for possível alterar o curso dos injustos acontecimentos. Injustos, porque fruto de erros. Mas no plano amplo da vida, a justiça sempre reina e se faz reinar, pois temos sempre a chance de compensação por qualquer sofrimento indevido, mesmo aquele resultante de uma desencarnação não planejada (LE 738a e 738b).


Miguel, S. N.